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Dança dos Demónios - Intolerância em Portugal

"Dança dos Demónios" é um estudo inédito sobre o fenómeno da intolerância na cultura portuguesa. São analisados fenómenos como o antifeminismo, anticomunismo, anticlericalismo, entre outros movimentos de confronto. Porque surgem esses movimentos? Em que se baseiam? Como agem? Quais as suas estratégias? Ao tocar em cada um desses anti algo, percorremos toda a nossa História e a forma como lidámos com as diferenças religiosas, políticas e culturais ao longo dos tempos.

Coordenada por António Marujo e José Eduardo Franco, a obra conta com a colaboração dos seguintes autores: Esther Mucznick (investigadora em assuntos judaicos), Faranaz Keshavjee (investigadora em temas islâmicos), Luís Machado de Abreu (historiador, professor universitário), João Francisco Marques (historiador), José Eduardo Franco (historiador), Rui Ramos (historiador), Ana Vicente (investigadora em temas feministas), Ernesto Castro Leal (historiador), Miguel Real (escritor) e Viriato Soromenho-Marques (professor de Filosofia e investigador).

Excertos das páginas introdutórias:

Abraão ouviu uma voz que o chamava, e partiu da sua terra, para nunca mais voltar. A sua viagem vai na direcção do novo, do não familiar, do diferente, do Outro. Ninguém o espera num regresso ao ponto de partida. Há só uma Palavra de promessa que o chama para um futuro sempre mais adiante. Abraão ouve, caminha, transcende. A sua identidade transfigura-se a cada passo, é processual, histórica. Rompe com o passado e o seu êxodo vai no sentido de um futuro imprevisível e novo.

É tentação constante a redução do diferente ao mesmo, porque dá segurança. Mas o mesmo não comunica. A identidade só se dá na e pela alteridade. Só há ser humano com outros seres humanos. Ser e ser-em-relação identificam-se. A alteridade não é adjacente, acrescentada. O Homem só existe no encontro com o Outro/outros. Sem tu, não há eu, e nós somos nós, na presença e no encontro com os outros.

Porque é que se passa do encontro mutuamente constituinte e enriquecedor à suspeita, à luta e ataque destruidores, indicados no prefixo anti dos diferentes sufixos ismos da obra em presença?

No Génesis, primeiro livro da Bíblia, narra-se o mito de Babel. Os homens disseram: «Vamos construir uma cidade e uma torre, cujo cimo atinja os céus. Assim havemos de tornar-nos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a superfície da Terra.» O Senhor, porém, disse: «Vamos descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros.» E o Senhor dispersou-os por toda a superfície da Terra. Babel deriva do verbo balal que significa «misturar», «confundir», e, por assonância, remete para Babilónia.

É um mito de uma actualidade dramática. Note-se que em capítulos anteriores do Génesis se fala do plano de Deus que quer que a Humanidade cresça e se multiplique em «povos que se dispersaram por países e línguas, por famílias e nações». Assim, o que está em causa não é a dispersão pela Terra nem a variedade das línguas. O mito da Torre de Babel põe a nu e denuncia o imperialismo dominador de um sobre todos os outros, na incapacidade do descentramento de si para colocar-se no lugar do outro e, no respeito pela alteridade insuprimível, entrar em diálogo.

No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. A arrogância imperial de Babel anula a diferença. O amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar.

 

Compreender já é princípio de cura

A história da cultura e da mentalidade portuguesas foi e continua a ser marcada por conflitos ideológicos e sociais que têm gerado dinamismos de confrontação de longa duração entre grupos socioculturais, etnias, religiões, géneros e classes. Os movimentos ou correntes, que denominamos com o prefixo anti, fracturaram profundamente a sociedade portuguesa ao longo da sua caminhada histórica, com especial incidência e maior expressão cultural e mental a partir da modernidade.

A produção de doutrina e de acção das correntes anti são uma das expressões mais significativas de uma cultura e mentalidade de combate que caracterizou o apogeu destes movimentos ideológicos.

A intolerância traduzida em violência psicológica, e não poucas vezes física, gerada por estas correntes anti, é uma realidade de dimensão significativa que povoa o nosso passado colectivo. O seu conhecimento crítico pode ser, com efeito, uma contribuição para o entendimento de motivações, estratégias e modos de intervenção. Portanto, não como mera erudição, mas antes como forma de profilaxia, em nome da consolidação de uma sociedade que se deseja imbuída de cultura democrática e tolerante.

Trabalhamos, pois, com a convicção de que “compreender já é princípio de cura”, esperando que o entendimento das raízes da intolerância nos possa ajudar a purificar a memória. Desse modo tornar-nos-emos mais humanos e construtores de uma sociedade onde haja lugar para todos, salvaguardando a dignidade da diferença.

Hoje vivemos numa sociedade aberta, alicerçada em valores como a liberdade, o pluralismo, a tolerância, o respeito pela cultura e crenças do Outro. No entanto, bastas vezes se fendem e sangram as cicatrizes mal saradas desse passado conspiracionista e intolerante. Expressões, apreciações simplistas ou nostalgias de um passado segregacionista pretendem acordar os velhos fantasmas da conspiração oculta. Esse é um dos perigos que a democracia enfrenta e para o qual importa estar atento, especialmente pela via da educação para a tolerância.

Neste processo de figuração diabólica do Outro, podemos dizer que «o inferno são os outros»? Os textos desta obra mostram que há movimentos e atitudes culturais que subsistem, fazem a construção de uma história de que não se fala, permanecem como atavismos que só a consciência democrática e culturalmente fundada poderá vencer. E que ignoram que a humanidade se construiu e continuará a construir precisamente na base de intersecções sucessivas.

Como Teixeira de Pascoaes, aqui trazido por Viriato Soromenho-Marques, tão bem descrevia a propósito dos portugueses: «A alma da nossa Pátria resultou, como dissemos, do cruzamento de distintos e nobres atavismos: celtas, romanos, árabes, fenícios, godos, judeus, normandos, etc., e por isso, traduz, numa unidade original e activa, as qualidades herdadas daqueles povos.»

 

Anselmo Borges, António Marujo, José Eduardo Franco
In Dança dos Demónios - Intolerância em Portugal, ed. Círculo de Leitores/Temas & Debates
22.10.09

Capa

Dança dos Demónios
Intolerância em Portugal

Autor
António Marujo
José Eduardo Franco (orgs.)

Editora
Círculo de Leitores
Temas & Debates

Ano
2009

Páginas
632

Preço
€ 26,91

ISBN
978-989-644-072-5












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