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O Nome e a Forma

«à banalização do mal eu digo não / à tecnologia das próteses e ao mercado / que conforta em nós Narciso, digo não // digo não à xenografia da catástrofe mole, / à vociferação que matou Abel / e à justificação da violência como lei // e ao discurso peremptório digo não também / e à satanização do outro / que nos defende de nós próprios / [...]» (p. 202).

Liturgia ou poesia, a voz de José Augusto Mourão é essencialmente uma voz trágica por nela haver sempre a sensação do deus ignoto e tão paradoxalmente (humanamente) presente; o deus de Herculano, o da Harpa do Crente, o deus de Antero, pessoalíssima perseguição em direcção ao Nada, àquele Nirvana irresolvido que existe na Alma, sede da Gnose; o deus de Pascoaes, intuição religiosa do mundo da saudade indivisa e lusíada, enfim, o deus – Deus – que para Pessoa foi a «Grande Ogiva», a figura humanizada do oitavo poema do Guardador de Rebanhos e renasceu na poesia filosófca de Tolentino Mendonça como noite, entidade concreto-abstracta e espaço-tempo que se faz Poema, oração de interrogação do homo viator.

Para Mourão, professor de Semiótica e Dominicano, a poesia surge, cremo-lo, como epifania desse Deus revivido, voz regeneradora do seu e estar no mundo, presença que é «esplendor da verdade».

Na apresentação, escreve José Tolentino Mendonça que «A liturgia inscreve-nos numa visualidade específica, num tacto e num sabor. Inicia-nos na efusão sagrada dos aromas. E é, plenamente, audição». Também cada poema-oração do autor de O Nome e a Forma (Pedra Angular editora) é, plenamente, a audição do verbo, isto é, dos poemas percebidos (recebidos) como enunciações/anunciações daquele drama humano à Claudel, para quem toda a forma de esperança em Deus era uma forma em busca do seu Nome e da sua presença.

A poesia, afastada dos ideais da dialéctica da História – da Razão à Ciência, do Progresso à Técnica – afirma-se, pois, nesse abscôndito deus, no ignoto poema a quem se deve agradecer a revelação da palavra, muito para além do nome das Coisas e, assim, de forma inversa ao paganismo ou à latência divina das emanações de Deus, pelos deuses, numa poetisa como Sophia, José Augusto Mourão dirige-se não ao que é ou está transcendente ao homem, mas ao que, ainda que sendo transcendente, se pressente no próprio humano.

Não só da latência do divino nos fala este extraordinário livro. Pode o poema revelar-se e revelar-nos uma voz divina, mas não há, na luta a realizar-se, quaisquer dúvidas quanto ao empenhamento a depositar na conquista poética e agradecimento do Deus Ignoto: um deus que e «loucura do mundo», mas ao mesmo tempo é também aquela luz orientadora dos seres. É essa questão magna do humano em torno do mistério de existir num mundo condenado à bestialidade e à impermanência da Realidade o que, desde logo, aprofunda o sentido trágico desta poesia.

O poeta observa um mundo condenado e ao mesmo tempo pretende adivinhar onde existe ainda essa centelha de divino que faz da criação mais bela de Deus (o Homem) um ser que é humano à força de ser (im)perfeito e divino à força de ser humano. Por isso, se pode dizer que José Augusto Mourão pertence àquela estirpe de poetas religiosos que na nossa literatura fazem da experiência poética uma experiência profundamente religiosa, justamente porque o poema lhes surge como a forma mais próxima de comunicação com o divino que há na própria alma criadora e talvez porque se deseje, igualmente, que a poesia seja o único caminho de acesso ao deus (seja ele com maiúscula ou não).

Em alguns destes poemas, e tomando em linha de conta o princípio de Levinas – de que a poesia é o acto religioso por excelência – o que se ergue é uma voz perscrutadora, uma indagação do silêncio de Deus em face do ruído de uma civilização caduca e estéril. Proteger a linguagem de toda a sorte de conspurcação, eis o que se clama, numa primeira instância, em nome do homem e da sua (perdida?) religiosidade «Deus, abre o nosso coração / às portas da tua Palavra / só a tua Palavra não desertifica / porque não nos mantém na ilusão / da terra já havida e nos escava fundo / a cal antiga / dá à nossa vida a quietude móvel das barragens / quando a tarde finda / e a paz da água traz a paz de tudo / e dá ao teu mundo a sabedora dos gestos cotidianos [...]» (p. 52).

Para todos os efeitos, José Augusto Mourão, na senda de Antero, mas por inversão do sentido trágico neste, caminha por sobre outras águas, justamente aquelas que confinam com uma espécie de mitigado estoicismo, de raiz grega, que leva o sujeito, pela contemplação e pelo esforço do intelecto, a ver na transitoriedade das coisas uma lei necessária à própria evolução interior, sem obliterar o ego ou fitar no horizonte a anulação do Ego. Tudo porque a poesia nesta extraordinária reunião, pese embora uma visão trágica do poético, nem por isso se afunda (como no autor dos Sonetos) num esgotado sujeito que na morte encontra o único sentido da vida. Não. José Augusto Mourão reenvia-nos a essa alegria inicial do encontro do sujeito com a Palavra da Poesia.

 

António Carlos Cortez
In Jornal de Letras, 13.01.2010
13.01.10

Capa

O Nome e a Forma

Autor
José Augusto Mourão

Editora
Pedra Angular

Ano
2009

Páginas
320

Preço
16,20 €

ISBN
978-989-961-4543












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