Entrevista
O catolicismo chega a todos os sentidos
Entrevista do jornal La Vanguardia (Barcelona) a D. Gianfranco Ravasi, Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura.
Com crucifixos ou sem crucifixos nas salas de aula?
O crucifixo é um sinal de identidade cultural, um símbolo da cultura que bebemos. Porquê ocultá-lo?
Bebemos também do judaísmo e do helenismo: falta uma menorah e um Zeus.
Os legados hebraico e grego estão incluídos no cristianismo. Como europeus, a nossa identidade última é cristã.
Que valores simboliza o crucifixo?
Recorda-nos que há dor no mundo e pessoas que sofrem, injustiça e oprimidos, e que nós nos colocamos do seu lado.
É também um símbolo religioso: os espaços públicos não deveriam ser laicos?
O risco desse laicismo é ficarmos sem sinais de identidade cultural: vamos eliminando sinais... e fica-se sem nada!
O que é que define a nossa identidade?
A arte, a estética, a beleza visual. Não passa pela cabeça de ninguém irmos agora eliminar também águias e leões por critérios animalistas ou por simbolizarem os evangelistas!? Queremos empobrecer o que nos rodeia?
Os muçulmanos europeus querem também exibir os seus símbolos, minaretes...
Pois então juntemos ambos. Eles não renunciam aos seus símbolos nos seus países; não renunciemos nós aqui aos nossos!
Muçulmanos e protestantes não representam com imagens a divindade.
E eu prefiro o meu cristianismo com rosto.
El Greco
No catolicismo subsistem um certo politeísmo e um certo paganismo, certo?
Por que diz isso?
Por causa do culto aos santos e à Virgem, por tanta devoção a relíquias.
O catolicismo contempla o ser humano na sua integridade, juntando o espiritual e o sensorial. O ser humano não se reduz só a abstracções espirituais; é também sensorial, carnal, sensual, erótico...!
Senhor bispo, até onde vai parar?
Veja o erotismo do Cântico dos cânticos ou o que diziam os teólogos medievais: “No homem, o desejo de mulher é um belo dom de Deus”.
Bem dito. Continue, continue...
O catolicismo junta coisas, não fica só no abstracto e espiritual (como em certas formas de protestantismo): os católicos juntam o carnal, as formas, as imagens... Somos mediterrânicos! Admiro a Semana Santa em Espanha, tão plástica e bela...
A arte pode ser um caminho para Deus?
Os caminhos de Deus são múltiplos.
Catedral de Chartres, França
Pode ser-se ser católico e ateu?
A religião católica bebe-se com o leite materno: é uma dimensão sociocultural. Mas ser crente supõe um passo mais, outra dimensão... E ser crente católico é juntar ambas as dimensões, a interna – fé – e a externa – religião –, guiada pela Igreja.
Uma Igreja que marginaliza a mulher...
Sendo Jesus um homem, o sacerdote simboliza-o. Fica muito por fazer: há que feminizar o catolicismo, mas será que isso implica feminizar a hierarquia? É mais complexo...
Sendo o ateísmo um filho do racionalismo, podemos dizer que a fé não tem razão?
São os teólogos cristãos medievais (Tomás de Aquilo, Anselmo de Canterbury...) os pais do racionalismo, de onde derivará o Iluminismo, que por sua vez é, ao mesmo tempo, legado do cristianismo e ruptura com o cristianismo. Ruptura que encerrou um desvio.
Qual?
Se ficamos só com a razão, ficaremos a meio caminho! Porque não é só a razão que conhece: o coração, o amor, também conhecem!
Picasso
“O coração tem razões...”
“... que a razão desconhece” (Pascal). A ciência é filha da razão, que é filha do cristianismo... Mas “ciência sem consciência é a ruína da alma” (Espinoza). Somos algo mais que uma razão com pernas! A razão, deixada a só, pode desembocar facilmente na fria crueldade do verdugo.
Os totalitarismos do século XX?
Ambos anticatólicos. Nunca marginalizemos o legado cristão! E a Bíblia é culturalmente imprescindível: sem a Bíblia não entenderemos Voltaire, nem sequer Nietzsche nem tampouco Marx, como bem referiu Eliot.
A ciência pode ser um caminho para Deus?
Os caminhos de Deus são – de novo – múltiplos e imperscrutáveis... A ciência estuda como funciona a vida e a teologia estuda que sentido tem a vida, qual é a sua origem.
Pode ser-se crente e darwinista?
O darwinismo tornou-se uma ideologia... Mas a evolução, em biologia, não contradiz a ideia da criação divina.
NASA
Para a ciência, a criação tem um nome: Big Bang...
Os físicos do CERN – o acelerador de partículas que procura as primeiras partículas do universo – falam de encontrar a “partícula Deus”... Percebe-se que é só uma maneira simbólica de falar. Mas a criação não é um acto único.
Não?
A teologia fala simbolicamente do acto criativo. Mas o acto criativo é dinâmico, continuado e inclui a nossa liberdade.
Que lugar ocupa Deus na catástrofe do Haiti? O de criador?
“Para dar respostas, qualquer um é capaz; para fazer verdadeiras perguntas... há que ser um génio”, disse Oscar Wilde, e disse bem.
Pois, e eu não sou um génio, é verdade...
Jesus, na cruz, gritou: “Pai, por que me abandonaste?”. Porque Deus criador decide participar na imperfeição do criado, Deus decide ser também vítima, sofrer e morrer. Dentro da tragédia, Deus também vive.
Entrevista conduzida por Víctor-M.Amela
In La Vanguardia (10.2.2010)
© SNPC (trad.) |
16.02.10
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