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Meditação

O mistério do sofrimento

O Servo de Deus em Isaías, apresentado em quatro poemas (42, 1-4; 49, 1-6; 50, 4-11ª; 52, 13-54, 12) é a mais límpida descrição profética de Cristo que a Palavra de Deus declarou no Antigo Testamento.

A linguagem realista e vibrante do profeta obriga-nos a fazer face ao sofrimento de Cristo. Foi por nós que ele sofreu, a sua dor é o preço da nossa paz. É o Cristo de Grünewald, o corpo esmagado, torturado que somos obrigados a ver; não é algo que apreciemos.

Eu, pelo menos, não gosto. Suporto mal a visão do sofrimento de outro, sobretudo de um ser amado, como Cristo. Forma-se em mim um sentimento de indignação e até, por vezes, de revolta contra Deus, pois é a justiça de Deus que exige que este homem seja torturado desta forma. Com Job, sou tentado a perguntar o que é que os nossos pecados miseráveis, as nossas pequenas fraquezas e defeitos podem fazer a Deus, que é tão grande, tão transcendente, tão imutável e fora do alcance de todo o sofrimento. E se há ofensa, não seria mais magnânime, mais nobre, perdoar sem nada exigir? Não é isso o amor? Porquê vingar-se nos homens, sobretudo neste homem que era totalmente inocente? Porquê mesmo vingar-se? Cristo na cruz perdoou aos seus carrascos, mandou-nos perdoar a todos que nos ofenderam, é isso que é ser perfeito como o nosso Pai nos céus. Cristo anunciou e deu o exemplo do amor e não de uma justiça estrita. Como ver na atitude exigente de Deus com os homens, que o obrigou a “não poupar o seu próprio Filho”, o testemunho supremo de amor do Pai?

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Terão razão as pessoas que se oferecem como vítimas à justiça divina para atrair sobre elas, como pára-raios a cólera de Deus que se inflama contra os pecadores, que auto-infligem toda o género de suplícios para agradar a Deus, para o acalmar? Não será esse um Deus deveras sádico? Como é possível amá-lo? Será que um Ivan Karamazov, personagem através do qual Dostoïevsky exprimiu a rejeição ateísta de Deus, tem razão em recusar ter parte com este Deus, mesmo se a felicidade eterna lhe está garantida, se isso implicar a aceitação de uma harmonia universal que exige o sofrimento de uma criança inocente, de uma só criança inocente? E o sofrimento de Cristo? Não será esta revolta mais digna do homem, mais “justa” que a justiça de Deus? Que ele nos esmague, então, já que é mais forte, mas nós não diremos ámen à sua sede de sofrimento humano!

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Vós, que sois mais ponderados do que eu, perdoar-me-eis, mas por vezes é bom exprimir os pensamentos rebeldes que podem coexistir com convicções mais convenientes. Evidentemente, a lógica fria não teria dificuldade em separar-se do elemento de sensibilidade existente nestas reacções e de nos conduzir a perspectivas mais completas. Parece que estamos aqui a defender a causa do Cristo-homem contra Deus, o que é ridículo. Contudo, não esqueçamos que as relações entre Deus e o homem são um mistério que a inteligência humana, mesmo à luz da fé, não consegue compreender plenamente. A tensão dialéctica em certos momentos (por exemplo, no jardim do Getsémani) entre a vontade humana de Cristo e a vontade divina; os erros de uma exaltação doentia do sofrimento enquanto tal, de uma tendência para a dor cujas raízes patológicas seriam demonstradas por um psicanalista; o facto incontestável da rejeição massiva pelos modernos de um Deus cuja imagem deformada foi recebida de um cristianismo pouco profundo, tudo isto nos convida a uma purificação da fé. Como “adorar” a cruz, o suplício de Cristo que eu amo? Se a cruz, bem real, banhada de sangue escarlate, fosse o lugar de tortura de um ser de carne amado por nós mais do que tudo no mundo, seríamos capazes de a celebrar, de a abraçar, de a adorar?

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Na minha cela de solitário, só tenho uma imagem, o crucifixo e um postal da Santa Face dolorosa. Estes objectos são interrogações permanentes para mim; desconcertam-me, desprezam tudo o que é razoável aos meus olhos humanos, obrigando-me constantemente a ultrapassar a minha sensibilidade e a mergulhar num mistério – que é um mistério de amor, quero crê-lo, mas que pouco “vejo”.

Ainda assim, tentemos durante a Semana Santa vê-lo um pouco mais claro e assumir mais profundamente este “faça-se” que é o coração da nossa fé.

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Um monge da Cartuxa
Imagens: Matthias Grünewald
27.03.10

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