Cultura
Bem-vindos ao vosso estado gasoso
Para falar disto a que difusamente chamamos “tempos de incerteza”, um importante observador, o sociólogo Zygmunt Bauman, recorre à categoria do estado líquido (por oposição à solidez representada pelos estados de certeza). É como se, de repente, tudo perdesse consistência e se tornasse liquefeito. Os títulos de alguns dos seus livros, parte deles já traduzidos em português, são elucidativos: “Modernidade líquida” (2000), “Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos” (2003), “Vida líquida” (2005), “Medo líquido” (2006), “Tempos líquidos: viver na idade da incerteza” (2007).
Bauman explica deste modo o conceito que encontrou para transcrever o que vivemos: «A sociedade moderna líquida é aquela em que as condições de actuação dos seus membros mudam antes que as formas de actuar se consolidem… A liquidez da vida e da sociedade alimentam-se e reforçam-se mutuamente. A vida líquida não pode manter o seu rumo durante muito tempo…É uma vida temporária e vivida em condições de incerteza constante». Sintomáticas são também as antinomias que ele utiliza: velocidade e duração; consumação e consumo («a vida líquida é uma vida devoradora. Olha para o mundo e para todos os seus fragmentos como objectos de consumo»); valor real e valor instrumental («a vida líquida dota o mundo exterior de um valor puramente instrumental»).
O filósofo Yves Michaud continua o diagnóstico de Bauman e descreve a nossa época como um “estado gasoso”. Este, defende ele, é o tempo das percepções evaporadas, das atmosferas cada vez mais sem contornos, dos estetismos difusos e globais. Isto corresponde na cultura à era do entretenimento e da “turistização”. As artes e a cultura passaram a definir-se maioritariamente como acontecimento e espectáculo. Assistimos nessa linha ao triunfo das bienais, dos festivais mais diversos, das festas disto e daquilo. As aventuras singulares, o “artesanato” do espírito que ainda persista é remetido para um limbo de indiferença. A febre é a da exaltação das percepções, do multisensorial. O próprio consumo, avisa Michaud, tornar-se-á tendencialmente mais de experiências do que de produtos. The answer is blowin' in the wind?
José Tolentino Mendonça
© SNPC |
11.03.10
R. Krubner
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